O homem e a terra
Se algo ficou evidente com os devastadores incêndios ocorridos neste verão de 2025, é que a quantidade determina a qualidade. 400.000 hectares devastados, isto é, 4.000 quilômetros quadrados consumidos pelas chamas em quase meio mês. Praticamente uma província como Pontevedra.

De 1974 até 1981, Televisão Espanhola, naquele momento não só a 1, como também a única, transmitiu um programa sempre lembrado cujo título se tornou uma evidência, “O Homem e a Terra”. Dirigido e apresentado pelo médico Félix Samuel Rodríguez de la Fuente, foram 124 episódios no total divididos em três séries: Venezuela, Fauna Ibérica e Alasca.
Félix, o amigo dos animais
Como um erudito renascentista, em particular sobre a natureza, estudada com zelo desde sua mais tenra infância, a série foi representada por um dedicado e predestinado estomatologista de nome providencial, que desempenhou as funções de direção, realização e também elaborou os roteiros, personificando a nova figura do naturalista amador transformado em referência indispensável para as nascentes consciências ambientalistas. Polifacético e carismático, com certos dotes essenciais para se sair bem diante das câmeras, provinha de já ter mantido uma longa e frutífera trajetória como divulgador ambientalista, graças a uma projeção midiática muito relevante. Cetrero de vocação e já como especialista ornitólogo, graças ao apoio do popular jornalista Joaquín Soler Serrano introduzindo-o em um programa de televisão com falcão peregrino no braço, e também devido a sua muito elogiada capacidade para a oratória e a prosódia, inicia-se em 1966 a colaboração do pioneiro ecólogo com a televisão, que, com o passar do tempo, resultou em absoluta simbiose. A partir desse momento, a natureza na Espanha, para o grande público, para sempre, terá já nome e sobrenome.
Além de seu interesse pela falcoaria, desde 1965, por meio da criação de dois lobinhos salvos de morrer nas mãos do povo, consegue conviver com lobos e se tornar o macho alfa de várias matilhas, com tanta identidade e repercussão, que começa a divulgação do que considerava sua “verdade do lobo”. Eram épocas nas quais, o temível cão selvagem desconhecido era considerado um predador odiado, perseguido e assediado como inimigo número um na floresta, imagem ancestral que conseguiu reverter, tornando-se assim seu principal defensor, e, consequentemente, de toda a natureza.
Natureza Disney
A obra de Félix como líder e defensor de uma visão diferente do ambiente natural, foi imensa e de uma transcendência dificilmente mensurável. Tanto é assim, que, com uma visão profética surpreendente, Félix apresentou no dia 4 de março de 1980 um documento com o título surpreendentemente avançado de “Estratégia mundial para a conservação dos recursos vivos e a realização de um desenvolvimento sustentado“, proposta realizada pela União Internacional para a Conservação da Natureza e os Recursos Naturais.
Hoje em dia, se o saudoso conservacionista pudesse levantar a cabeça desde seu Burgos natal, tendo perdido a vida após um lamentável acidente em Shaktoolik, Alasca, morreria de novo, mas de pena. Seu legado, imenso, ver-se-ia embaçado pelo modo como está sendo tratada a natureza, a terra, em última instância. Além de ter conseguido que perdêssemos de vista que os animais, por mais que insistamos, não são pessoas de quatro ou duas patas, mesmo sem elas, tudo isso “à la Disney”, nosso respeito pela natureza, desde a época de Félix, tem diminuído consideravelmente.
“Quando uma floresta queima…
Algo seu se queima… senhor Conde”. Esta assertiva do cartunista Jaume Perich foi o subtítulo de seu livro Autopista de 1971, e passou ao acervo popular como um lema que era repetido como uma ladainha todos os começos de verão. Perich, irônico como sempre, mostrava com sua genial afirmação, que o público e o privado não são realidades tão diferentes; nem tão distantes.
Se algo tem sido evidenciado pelos devastadores incêndios ocorridos neste canículo de 2025 é que a quantidade faz a qualidade. 400.000 hectares devastados, ou seja, 4.000 quilômetros quadrados consumidos pelas chamas quase em meio mês. Traduzido em um sistema métrico compreensível por gráfico, e aplicando-o a Galícia, lembremos que a superfície de Pontevedra é de, praticamente, 4.500 quilômetros quadrados. É como se tivéssemos queimado uma província inteira, quase.
E se também algo podemos contrapor, para nossa desgraça, com o legado de Félix Rodríguez de la Fuente é nossa atual desconsideração e falta de cuidado prático com a natureza. Desde que esta se encontre regida pelos escritórios de urbanitas desconhecidos dos intricados do campo, até que a engenharia florestal na Galícia importe menos que a localização de sedes da carreira de medicina, ou nosso já ancestral desprezo por uma gestão eficiente do patrimônio natural, esse desinteresse manifesto nos leva a repetir erros sérios, hoje e amanhã. Isso sim, enquanto continuar chovendo…