O desarmamento dos direitos humanos
Talvez um grande desafio do nosso tempo seja voltar a acreditar na utilidade dos direitos humanos. Reafirmar que não são uma utopia abstrata nem uma ferramenta do Ocidente, mas "a gramática mínima do humano". Sem essa convicção, a ONU pode se reformar mil vezes, mas continuará vazia.
Durante décadas, os direitos humanos foram a linguagem comum da dignidade. Um ideal compartilhado, imperfeito mas universal, que permitiu julgar ditaduras, frear guerras e estabelecer pontes entre povos e também entre cidadãos. Hoje, porém, essa linguagem está se apagando. Não por um colapso visível, mas por um desarmamento silencioso, fragmentado, burocrático e global, no qual as potências (autoritárias e também democráticas) estão reduzindo, manipulando ou ignorando os mesmos princípios que alguma vez proclamaram defender.
O recente relatório do International Service for Human Rights (ISHR) (Serviço Internacional para os Direitos Humanos ou SIDH) é apenas um dos muitos sinais de alarme. O documento revela como China e Rússia transformaram as negociações orçamentárias da ONU num campo de batalha político, bloqueando fundos essenciais para a defesa dos direitos humanos e interferindo nas investigações sobre abusos cometidos em países aliados. Na prática, estão utilizando as regras do sistema multilateral para esvaziá-lo por dentro: menos dinheiro para o Alto Comissariado, menos pessoal para as missões de observação, menos capacidade para denunciar violações graves.
Mas seria um erro —e uma ingenuidade— pensar que esta ofensiva pertence unicamente a um bloco autoritário. O desarmamento dos direitos humanos não tem um só rosto. Também é impulsionado por governos democráticos quando cortam contribuições, politizam os orçamentos ou criminalizam a ação humanitária.
“Na Ásia, Oriente Médio e África, potências regionais como Índia, Turquia, Egito ou Arábia Saudita aperfeiçoaram outra forma de erosão destes direitos: o controle político da sociedade civil”
Nos Estados Unidos, a (des)administração Trump suspendeu o pagamento de suas quotas à ONU e congelou o financiamento de organismos como a ACNUR ou a OMS. A Europa, entretanto, transformou o Mediterrâneo numa fronteira fortificada, onde organizações como Open Arms ou Médicos Sem Fronteiras são perseguidas judicialmente por resgatar vidas. As mesmas instituições que denunciavam as omissões da ONU agora reproduzem, nas suas costas, uma versão doméstica do desprezo pelos direitos universais.
Na Ásia, no Oriente Médio e na África, potências regionais como Índia, Turquia, Egito ou Arábia Saudita aperfeiçoaram outra forma de erosão destes direitos: o controle político da sociedade civil. Limitam o registro de ONGs, restringem a cooperação internacional e reprimem jornalistas ou ativistas com leis de segurança nacional. Na América Latina, governos de sinal ideológico oposto —de esquerda e de direita— coincidem em algo: o desconforto frente à vigilância internacional, que consideram uma interferência mais do que uma garantia.
A paradoja é que, enquanto os discursos oficiais falam de soberania, desenvolvimento ou segurança, o que realmente está em jogo é a impunidade. Cortar fundos, obstruir investigações ou assediar aqueles que denunciam violações são diferentes formas de neutralizar a prestação de contas. A ONU, nascida para não repetir os horrores do século XX, está presa hoje entre a geopolítica do veto e a contabilidade do corte.
A chamada “Iniciativa ONU80”, apresentada como uma reforma para tornar a organização mais eficiente, resultou numa política de austeridade que castiga, acima de tudo, o pilar dos direitos humanos. Em nome da eficiência, sacrifica-se a justiça. Em nome da neutralidade, dilui-se a denúncia. Enquanto isso, os fundos não chegam, as missões são canceladas e as vítimas esperam em vão uma resposta que nunca é financiada.
Mas o desarmamento dos direitos humanos não é só institucional; também é cultural. Em muitas sociedades, o discurso dos direitos humanos tornou-se suspeito, associado ao elitismo, à globalização ou à correção política. A linguagem da compaixão foi substituída pela do medo: medo do outro, do migrante, do dissidente, do diferente. E esse medo é terreno fértil para o ódio e o autoritarismo.
“A defesa dos direitos humanos não precisa de heróis, mas de coerência: governos que paguem o que devem, tribunais que façam seu trabalho, meios que informem sem medo e cidadãos que não se resignem à indiferença”
As redes sociais, que uma vez amplificaram as vozes da denúncia, hoje contribuem para o ruído e a confusão. As campanhas de desinformação patrocinadas por Estados e corporações transformam as violações em narrativas em disputa, onde tudo se relativiza e ninguém parece responsável. O que antes era um crime comprovado hoje se dissolve na névoa da pós-verdade.
Contudo, em meio a este panorama sombrio, nem tudo está perdido. Ainda existem milhares de pessoas e organizações que sustentam o ideal da dignidade humana, embora os Estados lhes fechem portas e os algoritmos os silenciem. Os voluntários que arriscam sua liberdade para denunciar o colapso climático; os médicos que trabalham em zonas de guerra; os advogados que documentam torturas em prisões secretas; as mulheres que continuam lutando para decidir sobre seus corpos… Todos eles são a resistência viva frente ao desmantelamento de uma ordem que custou gerações construir.
Talvez um grande desafio de nosso tempo seja voltar a acreditar na utilidade dos direitos humanos. Reafirmar que não são uma utopia abstrata nem uma ferramenta do Ocidente, mas “a gramática mínima do humano”. Sem essa convicção, a ONU pode reformar-se mil vezes, mas continuará vazia.
A defesa dos direitos humanos não precisa de heróis, mas de coerência: governos que paguem o que devem, tribunais que façam seu trabalho, meios que informem sem medo e cidadãos que não se resignem à indiferença. Porque os direitos se perdem, quase sempre, quando deixam de ser defendidos.
Este desarmamento não soa a disparos, mas a silêncio: orçamentos que não chegam, relatórios que não se publicam, barcos que não irão zarpar… Mas esse silêncio também mata. E, se o mundo não reagir, logo descobriremos que o preço da indiferença é viver num planeta onde a dignidade já não tem quem a defenda.