Psicossociologia quântica
Quando tentamos fixar a realidade de maneira rígida ou ditatorial, o que destruímos não é apenas a diversidade de perspetivas, mas a própria possibilidade de nos entendermos como espécie.

A mecânica quântica demonstrou algo que desafia nossa forma de pensar: o simples ato de observar algo influencia o observado. No conhecido experimento da dupla fenda, um elétron pode se comportar de duas maneiras diferentes, como onda ou como partícula, dependendo de se está sendo observado ou não.
Embora pertença ao campo da física teórica — mas mais comprovada cientificamente que muitos princípios da física de materiais —, esta noção apresenta um paralelismo com dinâmicas psicológicas e sociais, onde uma mesma situação ou os mesmos fatos experimentam várias interpretações; que geralmente coexistem, mas, infelizmente, muitas vezes mais do que deveriam, entram em conflito.
Na política, vemos isso todos os dias. Não se debatem apenas fatos, mas percepções, molduras interpretativas, julgamentos… E por trás desses relatos, o observador determina o que é visível e o que permanece oculto. Por exemplo, a figura de Pedro Sánchez é, para alguns, símbolo de diálogo e avanço social; enquanto para outros, é um inimigo da pátria ou um ditador. Da mesma forma, a direita espanhola tem sua própria versão “patriótica”, branqueando seu “modus operandi” e culpando sistematicamente o outro.
O mesmo ocorre, em outra escala, nos cenários bélicos. Para a Rússia, a incursão na Ucrânia é vista como uma “operação especial” para proteger sua história. Em contrapartida, para os ucranianos, é uma agressão cruel que viola seu direito de serem uma nação. Em Gaza, Israel argumenta que atua em “defesa legítima”; enquanto os palestinos afirmam que sofrem uma ocupação e um genocídio. As mortes são inegáveis, mas as narrativas que as cercam fraturam a humanidade em visões de mundo opostas.
A migração oferece outro exemplo claro de “psicossociologia quântica”. O mesmo fluxo de pessoas torna-se crise ou oportunidade, dependendo de quem o observa. Para alguns setores, representa uma ameaça ao emprego, à cultura ou à segurança. Para outros, é um fenômeno humano inevitável, que enriquece sociedades e sustenta economias. E dessa visão dependem políticas públicas que podem salvar vidas… ou condená-las.
No que se refere à mudança climática, ocorre algo semelhante. A ciência fornece dados sólidos sobre o aquecimento global. No entanto, parte da sociedade percebe isso como exagero ou conspiração. O observador que nega a evidência constrói uma realidade diferente, onde o problema parece inexistente. Mas aqui, ao contrário da física quântica, a indiferença não muda o fato: Groenlândia, os polos e os glaciares estão derretendo igualmente.
A identidade, a diversidade sexual e de gênero é outro campo de observação múltipla. Para alguns, a homossexualidade ou a transexualidade são expressões legítimas da liberdade individual. Para outros, continuam sendo desvios, erros ou até ameaças. O fato biográfico de uma pessoa — sua maneira de amar ou de se definir — não muda; o que muda é a maneira como a sociedade olha, aceita ou rejeita.
O mesmo acontece com a mulher. O feminismo destacou desigualdades históricas que durante séculos foram normalizadas. No entanto, ainda persistem aqueles que consideram as demandas por igualdade como exageros ou privilégios injustificados. A mesma realidade — diferença salarial, violência de gênero, carga de cuidados — é vista como problema estrutural, por uns, ou como “relato vitimista”, por outros.
Já a famosa frase “nada é verdade nem mentira, tudo é de acordo com a cor do cristal com que se olha”, atribuída ao poeta asturiano Ramón de Campoamor (1817-1901) e popularizada ao ser incluída por Benito Pérez Galdós (1843-1920) em Os Episódios Nacionais, significa que a percepção da realidade é influenciada pela perspectiva de cada pessoa.
A pluralidade não é um defeito da sociedade, mas sua maior riqueza
Outro ditado ainda mais comum é que “a história é escrita pelos vencedores”. Algo que, no entanto, é desmentido pelo doutor em humanidades mexicano Juan Miguel Zunzunegui, ao enfatizar que a “verdade histórica” não existe, mas sim múltiplas interpretações, e que o que nos contam ou contamos se transforma em nossa realidade que, geralmente, nos condiciona ou “escraviza”.
Em sua palestra no espaço Aprendemos Juntos, disponível na internet, por exemplo, argumenta que a história como é contada no México, apresentando os espanhóis como os maus e as culturas pré-hispânicas como perfeitas, perpetua um discurso de ódio e vitimismo, impedindo o progresso. Diferentemente, como também aponta, em países anglófonos tendem a glorificar seus relatos históricos; embora tenham sido tão deploráveis quanto começar seu império com a pirataria ou praticamente exterminar os nativos norte-americanos.
O mesmo se pode aplicar em nosso país em relação a diferentes relatos históricos. Como no caso do franquismo, que impôs por décadas uma narrativa oficial de “cruzada”, mas que ocultou a ditadura e a terrível repressão na qual se baseou.
Atualmente, também Trump reescreve a política estadounidense com seu relato de “América primeiro” (a dele, não a dos chicanos, negros, homossexuais, etc.); diante de fatos comprovados de ser um mentiroso patológico, um trapaceiro como empresário, um machista quase abusador, um extorsionador nas relações, etc.
Ou o caso de Bolsonaro, recentemente condenado pela justiça brasileira por articular um golpe de estado quando Lula venceu as eleições, mas que para outros é um/outra “salvador da pátria”.
Em todos esses casos, alguma das formas de ver as coisas tenta se apresentar como a única válida. E não só na história. A vida cotidiana também está cheia de exemplos: uma música que emociona uns e deixa frios a outros; uma jogada de futebol que é pênalti para uns e carga legal para outros; uma frase que se sente como carinho ou como reproche dependendo do ânimo do dia; os protestos contra Israel um “honor” ou um “ridículo internacional”… A realidade é poliédrica, cambiante, dependente do/a observador/a.
O humanismo, como o divulgado pelo mencionado doutor Zunzunegui, nos lembra que “a verdade” não é patrimônio de ninguém, mas um relato compartilhado entre todos. Para isso, é fundamental escolher narrativas e perspectivas que promovam a paz, a unidade e a esperança, além de evitar aquelas contaminadas pelo ódio e pelos conflitos. Por isso, não basta aceitar a diversidade de percepções, mas sim, melhor, garantir que nenhuma se imponha de forma violenta sobre as demais. A pluralidade não é um defeito da sociedade, mas sua maior riqueza.
Em suma, não é ruim que existam diferentes olhares e enfoques psicossociais; o pior é a tentação de impô-los como absolutos, anulando todos os demais. Seria algo como forçar os elétrons a serem apenas ondas ou apenas partículas, negando-lhes sua natureza ambígua e complexa. Além de conseguir com isso apenas o colapso de qualquer coisa, seria estúpido.[i].
E no âmbito humano ocorre o mesmo: quando tentamos fixar a realidade de maneira rígida ou ditatorial, o que destruímos não é apenas a diversidade de perspectivas, mas a própria possibilidade de nos compreendermos como espécie. E nessa perda, paradoxalmente, apostamos o futuro.
[i] Em outro campo científico, o da paleoantropologia, ou seja, com a perspectiva temporal mais ampla possível sobre nossa existência, o codiretor do sítio de Atapuerca, descobridor do Homo antecessor e um dos cientistas sociais mais reconhecidos internacionalmente, o pré-historiador, arqueólogo, antropólogo, geólogo, paleontólogo e catedrático de pré-história Eudald Carbonell, qualifica nossa espécie como imbecil, baseando-se no que temos (des)feito nos últimos milênios. A esse respeito, recomendo ouvir a entrevista que lhe fiz no programa n.º 15 de ERES. Falamos de SERes, na plataforma Radiosapiens: https://www.radiosapiens.es/somos-uma-especie-imbecil/