O debate sobre eliminar a mudança de horário: Por que o pesquisador Jorge Mira acredita que é uma ideia “equivocada”?
O investigador e professor da Universidade de Santiago de Compostela, que fez parte da comissão de especialistas para a reforma da hora em 2018, indica que "não existe consenso" sobre a eliminação
O investigador e professor da Universidade de Santiago de Compostela (USC), Jorge Mira, explicou que se chegasse a produzir a eliminação da mudança sazonal de hora, a sociedade “possivelmente voltaria a se autoorganizar para se adaptar ou confrontar a agressão que é ter um relógio fixo num país com estações”.
De fato, o debate em torno desta questão ganhou relevância mediática com o anúncio do presidente do Governo, Pedro Sánchez, na última segunda-feira de propor ao Conselho Europeu terminar com a modificação horária — que atrasará o relógio uma hora na madrugada de sábado 25 para domingo 26 — argumentando que “já não faz sentido”, que mal ajuda a economizar energia e que inclusive tem “um impacto negativo” na saúde e na vida das pessoas.
Numa entrevista concedida a Europa Press, Mira, que fez parte da comissão de especialistas para a reforma da hora oficial (2018-2019), manifestou que é “uma decisão equivocada” e “não existe consenso” por parte do grupo de especialistas sobre a eliminação.
“É preciso adaptar o relógio”
Como explicou o pesquisador, Espanha situa-se fora das zonas tropicais, onde o sol nasce e se põe sempre à mesma hora, o que permite a esses países dispensar essa mudança sazonal. “O pôr e nascer do sol na Espanha muda três horas pela manhã e três horas pela tarde dependendo da estação. Passamos de ter menos sol que a Antártida a ter mais sol que no Quénia“, expôs.
Portanto, as condições de exposição solar “mudam muito” nesta latitude, de modo que, aponta Mira, “a insolação mais ou menos no solstício de verão é maior do que 92%, enquanto na mesma latitude chega a 33% seis meses depois”. Devido a essa variação, “é necessário adaptar o relógio para não se levantar cada vez mais desfasados”.
“Os espanhóis de cem anos atrás levantavam-se três horas antes em junho do que em dezembro. Se colocarmos o relógio para funcionar fixamente, vamos nos levantar à mesma hora todo o ano, independentemente do que faça o sol. E se o sol está se deslocando três horas, temos um problema“, ampliou.
Na sequência, Mira compara isso com a vestimenta, explicando que vivendo na Espanha “não se podem usar bermudas o ano todo porque acabarias morrendo de frio no inverno, e no caso de usar casaco durante os 12 meses, no verão sofrerias muito calor”.
Diferenças na Europa
Dentro do próprio continente, o pesquisador assinalou que existem “bastantes diferenças” entre as regiões europeias. “Olhando para a curvatura do planeta Terra, as zonas que estão perto dos casquetes polares do círculo polar já têm muita curvatura e de fato acima do círculo polar ártico chega um momento em que é sempre noite no inverno ou é sempre dia no verão”, manifesta.
Por isso, “não é surpreendente” que países como a Finlândia peçam para suprimir a mudança sazonal de hora, pois vivendo em algumas áreas do território, “passam de 24 horas de noite em dezembro a 24 horas de luz em junho”. “Para eles, ajustar uma hora mais ou menos não significa nada”, sintetiza Mira.
Questionado sobre as possíveis consequências da eliminação também na Espanha, Mira indicou que no caso de adotar a hora de inverno o ano todo, na faixa leste do país estaria amanhecendo entre as cinco e as seis da manhã quatro meses por ano.
“Estaria se sequestrando uma hora de luz solar à tarde, quando há muita gente que estaria aproveitando, e estamos transferindo para as cinco ou as seis da manhã, que é quando há muito pouca gente acordada”, raciocinou.
Reação da sociedade
“A primeira hora oficial na Espanha foi estabelecida em 1901, mas evidentemente o país demorou um tempo para absorver essa nova situação. Quando o relógio começa a tomar domínio, a sociedade tinha um relógio fixo perante um país com estações”, relata o pesquisador, que amplia que como resposta a sociedade espanhola projetou um método que consistiu em colocar horários de inverno e horários de verão nas lojas para se adaptar.
Assim, a própria sociedade se autoorganizou criando um salto de uma hora entre os meses de setembro a março e outra hora de abril a setembro. Posteriormente, instaura-se a mudança sazonal de hora que “de certa forma oficializa isso que a sociedade já tinha descoberto” e desaparecem essas mudanças de hora nas lojas.
“Isso demonstra perfeitamente que a mudança sazonal de hora é a medida precisa que este país precisava e a melhor prova de seu sucesso“, sentencia Mira, prevendo que se fosse eliminada “possivelmente a sociedade vai responder da mesma forma”.
Alterações derivadas
Um dos argumentos mais utilizados no debate a favor da eliminação da mudança de hora são as alterações que produz no organismo adiantar ou atrasar uma hora duas vezes ao ano. Nesse sentido, o neurologista do Hospital Clínico Universitário de Santiago (CHUS), Emilio Rodríguez, assinala que as mais habituais ocorrem durante o período de adaptação que segue à mudança de hora e são a “irritabilidade, um menor rendimento e distúrbios como insônia”.
“O ritmo de ciclo sono-vigília tem que ser regular. Por quê? Porque senão aumenta o risco de doenças como hipertensão, diabetes, infarto do miocárdio, AVC,…etc. Este controle depende de um relógio interno que está localizado no cérebro, o qual depende muito da luz”, expôs.
Segundo o doutor, a Sociedade Espanhola do Sono sugere, “além de não fazer uma mudança de hora”, que se fixe o horário de inverno para o ano todo, já que facilita a exposição à luz nas primeiras horas da manhã, em horário de trabalho e escolar. “Isso ajuda a termos mais horas de sono e um despertar mais natural que coincide com o amanhecer”, sintetiza.
Por outro lado, se fosse posto o horário de verão de forma permanente, haveria mais horas de noite e escuridão pela manhã durante o inverno e mais horas de luz pela noite no verão, o que “desajusta o relógio interno e representa uma perda de horas de sono”.
“As mudanças de ritmo nas horas a que nos deitamos e levantamos em geral são desaconselháveis, mas no caso da mudança de hora é uma mudança à qual não podes te adaptar porque é brusca e afeta toda a semana de uma só vez. Não podes compensá-la facilmente”, desenvolveu.
Estudantes e trabalhadores
Quanto à população “mais vulnerável” a essas afetações, Rodríguez indica que são as crianças e adolescentes em idade escolar e o pessoal laboral, sendo os que têm que madrugar com umas horas de luz que “não são as adequadas” porque “levantam pela manhã e há escuridão”.
Questionado pelas recomendações para “minimizar” as alterações derivadas da mudança sazonal de hora, Emilio Rodríguez destaca as recomendações de higiene do sono. Ou seja, “evitar a exposição às telas à noite, colocar luz o mais cedo possível nas manhãs e tentar não atrasar tanto esse ritmo sono-vigília”.
Apesar de tudo, Rodríguez concluiu destacando que é possível que em Galiza, em relação aos ciclos de sono-vigília, “convenha mais um horário como o de Portugal”.